segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Coringa - somos todos insanos em potencial (contém spoilers)


     Diversas análises psicológicas de "Coringa" foram feitas. Gostaria de apenas pontuar certos aspectos que, no meu ponto de vista, marcaram o filme, foram pontos-chave para seu entendimento. 
     É interessante como estão surgindo filmes em que os vilões de tempos atrás agora são justificados em sua integridade, acrescentados de uma biografia que contextualiza suas maldades. Nessa leva estão "Malévola", "Esquadrão Suicida" e "Venom". Isso pode estar denunciando uma movimentação incomum na psique objetiva mundial em relação a conteúdos sombrios inconscientes. Filmes como "A Bela e a Fera", bem mais antigos, já apontavam para essa dinâmica em estágio nascente. Uma certa valorização da sombra, que pode ser salutar se for aceita conscientemente, sem que necessariamente se concorde com as atitudes correspondentes. Os conteúdos sombrios precisam ser aceitos, ter a oportunidade de se expressar, de se fazer conhecer pelo ego, e depois serem confrontados com os valores conscientes do indivíduo, que este de certa forma "diga" à sombra que existem sentimentos, valores humanos, que devem ser respeitados. Isso equilibra a psique e mantém sua integridade.
     Arthur Fleck é o Coringa. Em inglês fleck significa os substantivos mancha, nódoa, mas também o verbo pintar, salpicar e manchar. Assim, Coringa é uma espécie de mancha ou nódoa da sociedade. Ainda assim, uma sociedade que seja completa não pode abrir mão da sua loucura, a contraparte da racionalidade, da estabilidade e da estrutura, pois ela fornece a desorganização necessária - o caos - para que o criativo possa surgir e ter seu lugar.
     É interessante como Arthur Fleck confessou à assistente social que "durante toda sua vida não sabia se existia de verdade". Isso é muito comum nas pessoas que costumam negar seus conteúdos psíquicos originais e espontâneos (pensamentos, sentimentos, sensações e fantasias). Essa negação se baseia no que a pessoa percebeu que a família e a sociedade valoriza e despreza. Percepção essa que pode estar em muitos aspectos baseada em fatos reais, mas também, por outro lado, em concepções distorcidas da realidade e de si mesmas. É comum que, iniciada uma psicoterapia, percebam o quanto são reais, que "ganham existência" quando podem compartilhar seus sentimentos genuínos com as pessoas. Algumas sentem como se pudessem "apalpar" seu próprio eu, como se este ganhasse alguma substância que antes não possuía. 
     Mas o que acontece com Coringa é que ele vai surgindo, vai brotando aos poucos da trama, revelando seu estado, semelhante ao que ocorre com Norton no filme "Clube da Luta". Arthur usa uma máscara (persona) rígida, a de palhaço, para sempre mostrar um sorriso. Sua profissão é rir e fazer rir. Apenas a alegria, as risadas, podiam se manifestar, ao modo do filme "Divertida Mente", que personificou Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Nojinho na mente de uma menina. Não sabendo como se expressar autenticamente, como se fazer presente para se sentir existente, acaba recorrendo ao assassinato dos três agressores no metrô. Antes de ser um assassinato, os tiros são atos de revolta, de "explosão" contra ações que não respeitam limites, que ferem os mais fracos e não aceitam as diferenças. A violência neste caso, assim como nos casos de homens agressivos física e verbalmente com as esposas, é expressa devido ao indivíduo não encontrar outra maneira de exteriorizá-las. Antes de executar os agressores externos, sua máscara o agredia internamente, sufocando-o. Quando os mata, um ato equivalente é efetuado contra as forças repressoras internas, que agora foram para o "além" interno, o inconsciente. Arthur muda: deixa conteúdos que antes eram inconscientes entrarem, fazerem parte do seu ego. De gentil, tímido e receptivo, agora passa a ser violento e bem mais sensual. O que facilita essa espécie de conversão é ele parar de tomar os remédios psiquiátricos, que impediam a manifestação dos sintomas e retinham os conteúdos sombrios.
     Então surge a imagem interna correspondente à vizinha com que se encontrou no elevador. Por um bom tempo ela o acompanha e tem uma atitude receptiva para com ele. Isso acontece provavelmente por ele se mostrar mais acolhedor em relação às forças antes inconscientes. Elas ganham realidade. Com isso ele adota cabelos verdes no lugar da peruca e o próprio nariz, mais originais do que os do palhaço.
     Interessante é que Arthur, no programa de TV, faz uma crítica lúcida à realidade de Gotham. Não fossem os atos extremamente violentos poderia se dizer que ele havia se curado quase completamente. Coringa torna-se um líder da multidão, pois representa os elementos mais espontâneos, originais e indigentes de atenção da psique da coletividade.
     Segundo o Dicionário Michaelis online, Coringa (Curinga) pode ter várias interpretações, essencialmente a de indivíduo ou elemento que pode exercer funções variadas ou mudar de valor conforme a situação, seja no papel de ator, jogador, carta de baralho ou caractere (o asterisco, p. ex.). E Coringa, surpreendentemente, se torna um agente dos anseios do povo de Gotham, o que nem mesmo ele esperava. Mundialmente, o filme também faz muito sucesso, o que talvez não ocorresse tempos atrás. Talvez o mundo esteja bem mais receptivo a figuras de vilões, enquanto representantes do inconsciente coletivo. Aceitar que figuras como essa surjam do nosso interior não é perigoso, se se mantiver uma distância crítica em relação ao que elas possam originar em nós. O risco é que as pessoas as reprimam ou se identifiquem com elas, o que foi exemplificado no filme. O maior perigo é o homem não se conhecer, não aceitar a realidade do seu ser, como é. Ele pode até não concordar e se recusar a agir de acordo, mas tem que lidar com as expressões involuntárias do seu ser, para não se haver com manifestações irresponsáveis e impensadas como as do filme. Doenças, conflitos e morte é o mínimo que pode resultar daí. Saibamos viver a partir de dentro lá fora.

Leia mais a respeito: "A origem e a natureza do Eu" - "A origem do Eu", "A solidão e o trabalho com o inconsciente", "O pensamento positivo e a auto-ajuda", "Como integrar o seu dragão", "Gita - uma análise do 'Eu Sou'", "Alice no inconsciente coletivo", "Imaginação ativa ou terapia com o Sr. Inconsciente", "Os três níveis de consciência", "O belo, o feio, Deus e o preconceito", "Gita - uma análise do Eu Sou".

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Ancestralidade ausente e a popularidade dos mortos-vivos


     Um antigo nome atribuído aos ancestrais é "mortos vivos", isto é, aqueles que nos precedem na entrada ao mundo dos mortos e que de alguma forma permanecem vivos também. Existe uma antiga ideia de que o mundo diário dos fatos repousa sobre um mundo invisível do qual todos os fatos emergem. O mundo real com suas sérias leis e guerras intermináveis é menos real do que aquele que existe por trás dele, a fonte invisível de tudo o que vem parecer sólido e real. Esse mundo por trás do mundo tenta aflorar onde quer que o véu entre eles se torna mais sutil. A tristeza "afina" esse véu, assim como torna bela qualquer coisa que libere ideias e fantasias autênticas (MEAD, 2006, p. 365-6).
     Talvez a atração que a população mundial possui sobre a literatura ou sobre filmes de cinema e seriados com a temática "mortos-vivos" advenha do desprezo contemporâneo pelo tema "morte". A morte está bem mais higiênica - os funerais não ocorrem mais na casa do morto, de onde este sai ainda vivo para nunca mais voltar. Eles vão dos hospitais para as funerárias e destas para os cemitérios. Luto? Não existe mais tempo para o luto. Para certas pessoas, durar mais de um mês pode ser sinal de depressão ou transtorno pior.
     Esse mundo invisível a que o autor faz referência pode ser acessado facilmente por meio da própria psique e da imaginação. Tudo o que percebemos (e o mundo não pode existir para nós se nosso cérebro não o interpretar de acordo com a coletividade) repousa sobre as atividades psíquicas, esse mundo invisível. A tristeza recolhe nossa atenção para dentro e nos faz voltar a atenção para valores que nos eram invisíveis, e que estavam mortos para nós. Só então percebemos o quanto ainda estão vivos e clamando por atenção. O mundo dos mortos está mais vivo do que parece. 
      Os antigos estavam certos ao cultuar os mortos, pois simbolicamente voltavam a atenção para temas importantes e necessários, como a morte e o mundo invisível, subjetivo, oculto de todos - o inconsciente. Essa reverência fazia o papel da atenção psicológica que hoje aprendemos a aplicar em nós, sobre os assuntos urgentes, que muitas vezes tomam a forma de sintomas corporais.
     Os mortos-vivos veem nos aterrorizar na TV e no cinema. Esse símbolo torna explícito o que achamos ridículo: que algo morto possa se mover e andar sedento por matéria viva. Sim, a morte quer reviver, quer fazer parte da nossa vida, quer nos chamar a atenção sobre ela. Que saibamos dar o devido valor a esse chamado, interpretar corretamente o que parece nos importunar, pois somos matéria viva, e tudo o que faz parte de nós - desprezado ou não, vive e insiste em aparecer, apesar de podermos querê-lo morto. Que aprendamos a viver valorizando a morte e os mortos.
     Quando uma cultura nega a presença da morte na vida, ela perde a sabedoria deste ventre mais escuro. Nesta perda, ela tende a cortar o cuidado da mãe pessoal e forçar para a biologia o que viveria mais miticamente. A cultura que recusa considerar a morte, logo vem a saber menos da vida; o que começa como negação da morte, torna-se negação da vida. (MEAD, 2006, p. 109)


REFERÊNCIAS

MEAD, Michael J. The water of life: initiation and the tempering of the soul. Seatle: Greenfire Press, 2006.

domingo, 3 de junho de 2018

Sonho com alguém, mas outro morre

     Sempre me intrigou o fato de o senso comum, ou a tradição popular, alegar que, ao se sonhar com uma pessoa, outra acaba morrendo. Estudo os sonhos há mais de 20 anos, mas até hoje não encontrei resposta satisfatória para esta e várias outras questões envolvendo sonhos. Mas uma boa conversa, há pouco mais de um ano, me deu uma pista dos caminhos que nossa psique traça para tecer o sentido do destino.


     Um amigo relatou que sonhara com a morte do seu tio paraplégico. Então comentou que quem viera falecer, na verdade, fora outra pessoa, no caso, sua ex-esposa, como costuma ocorrer quando se sonha com a morte de alguém. Normalmente, nesses casos em que não se sabe a conexão, ou não se tem ciência do significado do sonho, muito provavelmente este acaba sendo encontrado oculto no inconsciente do sonhador. Investiguei com ele sobre o seu tio. Disse que este procura ser independente das pessoas, fazer tudo por conta própria, apesar das sérias limitações de sua paraplegia. Por outro lado, sua ex-esposa revelava ser uma personalidade totalmente oposta à dele, uma vez que procurava se identificar com as suas limitações psicológicas, tornando-se totalmente dependente das outras pessoas. Era uma pessoa cheia de conflitos, que usava de chantagens emocionais para com o sonhador, e era deprimida, recorrendo a medicamentos psiquiátricos. Acreditava que ela suicidara com tais remédios.
     Interessante aqui é que geralmente não encontramos evidências claras do sentido dos sonhos porque esperamos encontrar o vínculo dos fatos ou ideias na aparência dos acontecimentos. A psicologia, no entanto, procedendo à investigação científica do mundo psíquico, descobriu que os sonhos são como estórias que narram o que acontece interiormente com os sujeitos, em seu inconsciente. E sua linguagem sempre se revela muito clara e coerente quando procedemos aos métodos de trabalho com sonhos e conseguimos a descoberta do sentido oculto. O mesmo ocorre no presente caso.


     A conexão parece ocorrer entre o que o sonhador conhecia acerca do seu tio, e desconhecia a respeito da ex-esposa. O nosso inconsciente aloja figuras que são comumente opostas à personalidade consciente. Se tenho certa personalidade característica, meu inconsciente provavelmente conterá qualidades opostas às que identifico como minhas. E isso inclui também atributos sexuais. Se sou muito másculo e bruto, haverá uma figura inconsciente em mim, em forma de mulher, que apresentará propriedades totalmente opostas, e estas poderão aparecer, contra minha vontade, em certas situações. Parece que ocorreu o mesmo com o inconsciente da ex-esposa do sonhador: havia nele uma figura masculina que poderia ser representada, para o ex-marido, pelo tio paraplégico. No sonho, este veio a falecer, expressando que sua ex-esposa, tal como é simbolizada pela figura do seu inconsciente, iria morrer. No caso, o sonho atuou como um exame de raio-X, mostrando o inconsciente da ex, seu lado oculto, não revelado, desconhecido das pessoas do seu convívio, e não o seu lado conhecido, cotidiano. E é exatamente isso o que os sonhos revelam - aquilo que se ignora, que se encontra encoberto.
     Em outra ocasião, uma senhora residente no japão alegou não entender o que um sonho dizia, embora soubesse que continha uma mensagem oculta. Uma semana antes do acidente de moto que ceifaria a vida do filho, ela sonhara que estava em um salão enfeitado com cortinas negras, onde havia uma mesa com forro negro, e um vaso de lírio sobre ela. Era a formatura escolar de seu filho. Como somos ignorantes hoje em dia com relação à linguagem simbólica! Esta é uma linguagem universal, encontrada nas canções, nas poesias, nos hinos, na Bíblia, nos mitos, nas mais diversas culturas, em nossos próprios sonhos. Porém, a ignoramos. O sonho avisou a mãe que em breve ocorreria a formatura do filho. Ele iria formar-se na "escola da vida" (esta é a metáfora coletiva mais próxima que achei para expressar o que o sonho parecia querer transmitir ao seu ego). Os símbolos do sonho expressavam esse alerta. Talvez tenham atuado como consolo, ainda que não tenha captado a mensagem conscientemente. É provável que seu inconsciente havia captado certos sinais, não percebidos conscientemente, de que estava em processo um encadeamento de eventos que resultaria na morte do filho. O mesmo teria ocorrido no sonho analisado antes. 
     Esses dois casos revelam o quanto ainda ignoramos certos processos simples e corriqueiros de nossa psique. A ciência avançou muito em certos campos, e até no aspecto material dos sonhos, mas insiste em não pesquisar e em ignorar certos fenômenos empíricos relacionados a eles. A linguagem simbólica é desprezada em favor da científica, por causa de sua inexatidão e inadequação aos métodos técnicos. Isso é óbvio, uma vez que ela se volta para a interioridade dos indivíduos, da qual ficamos cada vez mais distantes. É hora de crescer menos para fora e amadurecer por dentro.


domingo, 13 de maio de 2018

Como a criatividade pode ajudar a reduzir o estresse


     Quando você apresenta suas melhores ideias? Quando as crianças estão gritando, a comida está queimando, e seu chefe está sendo chato? Provavelmente não. É mais provável que no chuveiro, em uma longa caminhada ou deitado na cama - quando você tem tempo para relaxar e pensar.
     Embora seja intuitivamente óbvio que o estresse não estimule a criatividade, pode ser surpreendente que o inverso pareça ser verdadeiro: o envolvimento na atividade criativa parece ajudar a reduzir o estresse.
     A professora da Harvard Business School, Teresa Amabile, demonstrou ambos os fatos uma década atrás quando persuadiu 200 funcionários corporativos a manter diários de trabalho.
     “Quando as pessoas se sentiam mais positivas, elas eram mais propensas a serem criativas”, disse Amabile, que escreveu sobre a pesquisa em seu livro de 2011, "O Princípio do Progresso" (“The Progress Principle”). “As pessoas eram predispostas a ter uma ideia criativa ou resolver um problema complexo de uma nova maneira naqueles dias, semanas, meses, quando estavam passando por emoções mais positivas”.
     Por outro lado, os trabalhadores que relataram sentir medo, raiva, tristeza, frustração ou estresse tiveram menor probabilidade de apresentar novas idéias, disse ela. Os chefes julgavam os comumente estressados como carentes de criatividade.
     O estresse é destrutivo para a criatividade, em parte porque é uma distração, disse Robert Epstein, psicólogo sênior de pesquisa do Instituto Americano de Pesquisa e Tecnologia Comportamental, sem fins lucrativos, em Vista, Califórnia. Se você está preocupado em chegar atrasado ao trabalho, tem menos energia mental para gerar uma boa ideia no trajeto.
     Tanto limpar a mente quanto se concentrar tão intensamente em algo que você não consegue pensar em mais nada - como quando você está sendo criativo - reduz o estresse, disse o Dr. Michael Roizen, diretor de bem-estar da Cleveland Clinic. "As pessoas que se concentram na criatividade - na escrita criativa ou na escrita de um poema ou seja lá o que for - são absolutamente consumidas por isso no momento em que o fazem", disse ele. E esse nível de foco se opõe ao estresse.
     E qual o sentido disso? Para aumentar sua criatividade, tente limitar seu estresse, e uma boa maneira de reduzi-lo é passar mais tempo em atividades criativas.

KAREN WEINTRAUB

(Texto disponível em: . Acesso em: 13 maio 2018. Publicado em 24 abr. 2015. Traduzido por Charles Alberto Resende para este blog)

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Atenção plena (mindfullness), o eu e o inconsciente

     Já há algum tempo passei a praticar o que se popularizou como mindfullness, ou atenção plena, em português. Essa espécie de meditação é milenar, mas só recentemente foi muito mais divulgada, apesar de ser conhecida em nosso meio, em certos círculos, desde o tempo de divulgação do budismo e da yoga no Ocidente. Sidarta Gautama, o Buda, a divulgou como maneira de se alcançar o Nirvana, a iluminação. Esta é a disposição em que se consegue o livramento dos opostos psíquicos, das qualidades antagônicas que leva o homem cair nos extremos, a nunca se equilibrar, a libertação do desejo. No estado de atenção plena o indivíduo consegue trilhar o "caminho do meio".
     Segundo Williams e Penman (2015), a atenção plena é tão eficaz quanto os antidepressivos no combate à depressão, sem o prejuízo dos efeitos colaterais destes. Também reduz em 50% a probabilidade da recaída das depressões mais severas. Por que essa meditação tem efeito tão poderoso sobre a psique?
     Como estudioso da psique a partir da psicologia junguiana, formei algumas hipóteses interessantes que conectam a psicologia oriental à ocidental. Entendo que aqueles que praticam a atenção plena (mindfullness) adquirem a capacidade de ficar atentos a tudo o que, potencialmente, faria parte do inconsciente pessoal. Logo, ao invés de sonhar com fatores reprimidos ou que não receberam atenção devida, como ocorre normalmente, o meditante considera atentamente os conteúdos que teria rejeitado ou desprezado. Isso teria o efeito de não alimentar o inconsciente pessoal. Na psicologia analítica aprende-se que o complexo é formado de uma "casca" pessoal, formada a partir das vivências individuais de temas arquetípicos, e de um núcleo impessoal, que constitui esse tema arquetípico já citado. De modo geral, pode-se afirmar, assim, que o inconsciente pessoal (Ics P), da mesma maneira que ocorre com seus constituintes (os complexos), forma uma "camada" pessoal, subjetiva, sobre o inconsciente coletivo (Ics C) ou impessoal. À medida que a psicoterapia avança e o Ics P é tratado, ele se torna energeticamente mínimo ou fraco, deixando "descoberto" o Ics C. Por isso os pacientes começam a sonhar com conteúdos arquetípicos, característicos do Ics C. Assim, o Oriente e sua prática de atenção plena tende a não formar um Ics P muito robusto, deixando praticamente "descoberto" o Ics C. Daí suas produções serem quase 100% expressões do Ics C.
     O que o Oriente percebe como "morte do ego", no processo de crescimento espiritual, a Psicologia Analítica pode entender como extinção do complexo do ego. Para uma discussão mais pormenorizada desse assunto, remeto o leitor ao texto "A origem e a natureza do Eu". Nele, proponho que a formação do complexo do ego serve à formação do foco de atenção consciente, outro aspecto do ego que advém diretamente do Si-mesmo. Na medida em que o complexo do ego serviu de "fôrma", de molde, para que a atenção consciente se focasse, ele se torna apenas relativamente necessário, pois acaba se constituindo um bloqueio à desidentificação com os conteúdos pessoais (individuação e atenção plena), que poderia levar à formação da função transcendente ou a um reforço do eixo ego–Si-mesmo. Talvez apenas uma delimitação mínima (complexo) fosse necessária para a continuidade da demarcação do foco de atenção egoica. Nesse ponto haveria ocorrido aquela espécie de morte do ego que o Oriente prega.
     Uma pista de que o ego possa se "destacar" de seu complexo, é o fenômeno de identificação com outro complexo, fenômeno bastante conhecido nos consultórios de psicologia. Quando se identifica com outro complexo ou até com um arquétipo, o ego parece exprimir uma outra personalidade por meio de comportamento inabitual e característico. Como isso se torna possível sem que o ego se tenha separado de seu complexo origem?
Conjunção de Kama (deus do amor hindu) e 
Rati (deusa dos prazeres eróticos).
     Um sinal característico de como o Oriente culturalmente trata seu Ics P milenarmente, muito antes do Ocidente, é o fato de considerar os temas sexuais tão sagrados quanto os demais, a ponto de serem retratadas divindades em pleno coito sexual. Sabiamente, aquele povo entende que a força dos instintos em geral, e do sexual em particular, é personificada pelos diversos deuses e demônios de seu panteão. Que o "mal" constitui mais uma aplicação "tortuosa" de forças humanas, animais e/ou espirituais, e uma identificação com estas, e não o "mal" em si mesmas.
     Por volta de 25 anos atrás eu fazia psicoterapia com análise de sonhos, praticava imaginação ativa e também mindfullness. Certo dia tive que ir à banca de revistas da rodoviária da cidade. Sentei-me num banco e passei à prática da atenção plena. Basicamente, esta consiste em prestar atenção a tudo o que ocorre interior e exteriormente. Subjetivamente, procura-se observar o fluxo de pensamentos, sentimentos, lembranças, etc., sem que nossa vontade interfira nesse tráfego de conteúdos psíquicos. Acontece que isso é muito difícil de se conseguir: observar sem interferir, focar a atenção sem usar da vontade para deter o fluxo. Geralmente foca-se o processo da respiração e, quando um pensamento, imagem, sensação ou sentimento perturba essa concentração, a primeira providência é lembrar-se de que se foi conduzido automaticamente até esse conteúdo, então se reconhece e se identifica esses elementos durante algum tempo, e volta-se à respiração. Exercita-se esse processo durante todo o tempo da meditação. Entretanto, essa prática não é restrita a uma certa posição, momento, postura ou lugar. Pode-se exercê-la em diferentes contextos: no trabalho, em viagem, na escola, etc., de olhos abertos ou fechados. De repente, observei, num clarão de insight, minha intenção de meditar, assim como o esforço que fazia para alcançar esse intento. Percebi que não era necessário esforço algum. Então ocorreu um estado alterado de consciência. Senti uma felicidade e uma exaltação libertadora. Passei a caminhar. Enquanto andava pela rua, percebia como se eu não estivesse caminhando, mas a rua passasse sob os meus pés, sem que eu andasse. Durante toda a semana que se seguiu, essa sensação de libertação perdurou. Lembro-me ainda hoje de estar observando alguém dar alguns avisos a um grupo e achar graça da seriedade e solenidade do momento. Não conseguia mesmo me conter de vontade de rir. Só depois de alguns dias a antiga condição de consciência voltou.
Baseada em Von Franz (1990, p. 91),
confeccionada por Charles A. Resende
     Penso que esse estado alterado de consciência ocorreu facilitado também pela psicoterapia, que naturalmente induz a uma condição de atenção à subjetividade e análise interior. Mas, de alguma forma, também foi facilitado pela prática da imaginação ativa. Como descrevo no texto do link, na imaginação ativa acontece um fluxo conjunto da consciência e do inconsciente. * Von Franz (1990, p. 103) afirma que, à medida em que as três primeiras funções psíquicas (a superior e as duas auxiliares) são assimiladas, durante o processo de individuação, forma-se uma tensão entre a consciência e o inconsciente. A quarta função (inferior) não pode ascender à consciência, pois se encontra intrinsecamente associada ao inconsciente. Por isso, a consciência se rebaixa e o inconsciente ascende, ambos até certo nível médio, criando uma região intermediária, a função transcendente. Transcendente porque o sujeito funciona além do modo comum de consciência. Ele está aberto ao inconsciente, sem se identificar com este. Nessa condição, não há identificação com o nível "superior" da consciência, nem com o "inferior", do inconsciente. O indivíduo, vive em imaginação ativa, um estado de consciência em estreito contato com o Si-mesmo, atento ao mundo exterior, interior e às sincronicidades que ocorrem devido a essa conexão psicofísica. A similaridade da imaginação ativa com a meditação da atenção plena é flagrante. Ambas consistem em criar um ponto médio onde a Cs se faz presente sem interferir nos conteúdos do Ics, embora acolhendo-os, levando-os em consideração.
     Penso ser esta a chave para se compreender a psicologia do budismo, da yoga e várias outras práticas orientais, assim como do sufismo, sem negar seus aspectos mais importantes, mas unindo-os num todo coerente, fazendo justiça tanto ao Ocidente quanto ao Oriente. A verdade, como ensinou Jung, consiste em conjugar diferentes pontos de vista para se obter uma visão mais completa possível do objeto, seja ele qual for. Assim, as perspectivas inclusivas, que explicam até mesmo as contradições mais resistentes, principalmente na ciência, formam modelos teóricos que tendem a prevalecer. Questionamentos e apontamentos são bem-vindos.

OBSERVAÇÃO: para maior conhecimento das 4 funções, expostas aqui, vide os textos referenciados a seguir.




REFERÊNCIAS


VON FRANZ, Marie Louise. HILLMAN, James. A tipologia de Jung. São Paulo: Cultrix, 1990.
WILLIAMS, Mark. PENMAN, Danny. Atenção plena - Mindfullness: como encontrar a paz em um mundo frenético (inclui CD de meditação). Rio de Janeiro: Sextante, 2015.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Resignificando o jogo Baleia Azul


     A título de introdução, remeto o leitor ao texto "A importância do rito de passagem na adolescência". Nele há o entendimento de que a adolescência é um período de vida em que ocorre um processo de transformação da criança em adulto. Por esse motivo, a duração da adolescência é muito móvel, a faixa de idade varia conforme a cultura e depende da época histórica do país também. Esse processo, em suma, envolve a morte psíquica da criança e seu renascimento, semelhante ao simbolismo do batismo religioso, uma vez que este abarca o mesmo motivo. 
     É isso que os ritos de passagem encenam, dramatizam: a morte do ego infantil, com o qual há o fechamento dos tempos de garoto, o seu sepultamento, para que o homem nasça justamente desse "túmulo". E essa morte é simbolizada nas iniciações, envolvendo, por exemplo, a colocação do corpo do jovem em um caixão em local escuro por um período, e o seu velório. Por vezes, os próprios sonhos podem induzir uma morte simbólica: vide o sonho repetido do adolescente, no qual ele era sempre velado pela família, no texto citado acima. Tudo indica que o sonho insistia em que ele fizesse a passagem, o processo de transformação, que não envolvia a morte literal, mas simbólica. Essa é a chave para o entendimento da indução ao suicídio no jogo Baleia Azul. Existem muitas indicações de que os 50 desafios do jogo promovem a morte literal do ego e do indivíduo, por meio da identificação deste com a figura da tal baleia. Por isso ele é macabro e letal. Mas não precisava ser assim...
     Tratemos o jogo um símbolo, uma cena de sonho. No jogo existe a figura do "curador". O dicionário dá algumas definições de curador, mas as que são mais próximas do nosso objetivo são: 1. pessoa com incumbência legal de zelar pelos bens e interesses daqueles que não o possam fazer (função de curadoria); 2. Feiticeiro/rezador que, supostamente, cura as mordidas de serpentes venenosas, ou que as torna respeitadas por estes (AURÉLIO, 2009). Nesta segunda definição poderíamos acrescentar simplesmente aquelas pessoas que, supostamente, curam doenças das pessoas com sua arte espiritual. Lembro-me que uma dessas benzedeiras, Dona Aurora, minha vizinha, certa vez curou várias verrugas que eu tinha na ponta dos meus dedos de ambas as mãos quando era adolescente. Após a "benzição" com galhos de arruda, monitorei cuidadosamente o acontecimento. Ao final do primeiro dia parecia que elas estavam diminuindo de tamanho; qual não foi minha surpresa ao ver meus dedos totalmente limpos no segundo dia! Hipnose? Se for, mesmo hoje, com todos os cursos de especializações que existem, deve ser muito raro achar um que tenha essa competência... De todo modo, tudo indica que esse curador do jogo queira remediar algum inconveniente desses jogadores adolescentes. Não faria ele o papel de iniciador à morte física nesse macabro rito de passagem? No entanto, não poderia ele fazer simplesmente um papel mais psicológico, levando nossos jovens a "morrerem" psiquicamente, enquanto crianças? Esta é a proposta deste texto: resignificar o jogo e chamar a atenção para a grande necessidade de ritos que subjaz no comportamento dos nossos jovens.
     Assim, toda a série de mutilações e cortes no corpo possuem um sentido iniciático. De acordo com Stephenson (2009, p. 57), muitos ritos de passagem, nas culturas antigas, envolviam o derramamento de sangue de alguma maneira. E havia uma dupla razão para isso: os garotos precisavam se acostumar a ver sangue, pois ser homem implicava correr riscos, ser resistente e corajoso, mesmo quando ferido; derramar sangue lembrava o ciclo menstrual da mulher, ligado à conclusão do parto (nascimento). Hoje essas práticas parecem cruéis e arcaicas, mas cumpriam seu objetivo de fazer uma transição relativamente rápida da criança em adulto, e podemos aprender muito do sucesso de sua dinâmica.
     Para Brandão (1990, p. 337), para se penetrar no símbolo da mutilação
é bom relembrar que a ordem da "cidade" é par: o homem se põe de pé, apoiando-se em suas duas pernas, trabalha com seus dois braços, olha a realidade com seus dois olhos. Ao contrário da ordem humana ou diurna, que é par, a ordem oculta, noturna, transcendental é UM, é ímpar. O disforme e o mutilado têm em comum o fato de estarem à margem da sociedade humana ou diurna, uma vez que neles a paridade foi prejudicada. Numero deus impari gaudet, o número ímpar agrada ao deus, diz o provérbio, mas an odd number significa também em inglês um "tipo estranho, um tipo incomum", e a expressão francesa il a commis un impair significa que alguém "cometeu uma inconveniência", "fez asneira", transgredindo, por leve que seja, a ordem humana. O criminoso "comete uma terrível inconveniência", transgredindo gravemente a ordem social; o herói se "singulariza perigosamente". Ambos realçam o sagrado e só se distinguem pela orientação vetorial do herói: sagrado-esquerdo e sagrado-direito. O vidente, como Tirésias, é cego; o gênio da eloquência é gago... a mutilação tem pois dois lados, revestindo-se também da complexio oppositorum, possuindo, assim, valor iniciático e contra-iniciático.
     Dizer ou escrever "Eu sou uma baleia" é afirmar a identidade com esse animal. Estar em comunhão ou se identificar com algo ou alguém pode envolver comer algo relacionado a isso, como ocorre no rito cristão da comunhão. Assim, ser uma baleia indica ser devorado por ela. Jacobi (1991, p. 135) diz que ser comido ou devorado é um motivo arquetípico amplamente propagado em várias lendas, contos e mitos. O exemplo mais conhecido é o de Jonas engolido pela baleia. A baleia é parente do dragão, simboliza com frequência a água, o mar que devora o sol e o devolve de novo à vida. A bruxa, o lobo e o ogro devorador possuem sentido similar. No simbolismo da alquimia encontra-se o leão que come o sol e o cabrito que entra no ventre de sua irmã Beia. Ser engolido é descer aos infernos, reafundar no ventre da mãe, extinguir a consciência, matar o eu que se afoga no inconsciente, na goela voraz da morte. "A viagem para o Hades, a Nekyia, o engolimento pela besta do caos, embora sejam as penúrias do inferno e da morte, são, no entanto, a condição prévia para a salvação e o renascimento." E no jogo da Baleia Azul os desafios de subir em um telhado alto, sentar-se na borda de uma ponte, ir a uma estrada de ferro, assistir a filmes de terror têm estreita relação com preparar-se para ir ao encontro da morte, do monstro, do dragão (o trem), da terra, da água, todos símbolos femininos, do útero do qual todos surgiram.
     O jogo da Baleia Azul não passa de um equívoco que literaliza uma necessidade simbólica de morrer. Na verdade, ele se torna tão polêmico e perigoso porque hoje em dia não fazemos mais a leitura simbólica, não observamos mais a realidade e o humano como são. Estamos muito ocupados e desligados do presente e de nosso interior, nossos instintos, emoções e sentimentos. Quanto mais das pessoas que nos são próximas... Ele está aí para dizer que precisamos morrer, nos transformar, mudar. "O paradoxo curioso é que quando eu me aceito como eu sou, então eu mudo." - Carl Rogers.


AGRADECIMENTOS

A Hugo Guimarães pelo texto ENTRE O VENTRE E O TÚMULO – UM OLHAR ARQUETÍPICO SOBRE A BALEIA AZUL, de onde tirei o link para os 50 desafios do jogo Baleia Azul.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1990. v. 1.

Novo Dicionário Aurélio versão 6.0 - Dicionário Eletrônico - Conforme a Nova Ortografia [CD-ROM], Positivo Informática, 2009.

STEPHENSON, Bret. From boys to men: spiritual rites of passage in an indulgent age. Rochester: Park Street, 2004.

domingo, 12 de março de 2017

Orgulho - o desprezo de mim mesmo

     Um dos maiores erros que o ser humano pode cometer, principalmente porque dele decorrem vários outros erros e complicações que podem levar, inclusive, ao fim da espécie, é não se aceitar como é. Não se aceitar, não se amar, promove uma cisão na personalidade. Se rejeito quem sou, logo existem duas personalidades em mim: quem despreza e quem é desprezado. E geralmente utilizamos de um artifício ainda mais ardiloso para não nos encontrarmos interiormente com aquela "persona non grata", pessoa indesejável. Nos recusamos a percebê-la, a escondemos de nós mesmos, fingimos que nunca a conhecemos.
     Ao mesmo tempo que repelimos essa parte sombria, idealizamos quem gostaríamos de ser, almejamos ser quem não somos. Isso se encontra bem expresso na trama da queda de Lúcifer. Este desejava ser como Deus, almejava substituí-lo. Deus percebeu o que ocorria e o expulsou do céu. O mesmo tema se desenrola de novo no Jardim do Éden, com a expulsão do casal primordial por ter caído (isso mesmo!) na tentação de querer ser como Deus, que sabe diferenciar o bem do mal. Este é o conhecido "pecado original". Entretanto, a religião reconhece apenas o aspecto mais superficial, de o homem, inicialmente, querer se igualar ao divino. Psicologicamente, porém, um dos pontos de vista menos explorados é o fato de haver uma recusa do homem e do anjo da luz em se aceitar como são - o início da divisão interna do homem. Assim, de um lado permanece a unidade original, Deus; do outro lado, a parte que é expulsa do paraíso - o homem e Satanás. A unidade, assim, representa o estado inconsciente primitivo e potencial; já a dualidade significa a consciência, o conhecimento do caráter duplo de tudo o que existe: o bem e o mal, o negativo e o positivo, o agradável e o desagradável, etc. A duplicidade aponta para o jogo de luz/sombra, por meio do qual os elementos se tornam perceptíveis. Luz sem sombra ofusca; sombra sem luz, torna tudo obscuro.
     O Diabo é conhecido no meio cristão como o "pai da mentira". Do grego, DIA- (através) + BALLEIN (jogar, lançar, atirar), diaballein ou diabo significaria "jogar através", "lançar através", isto é, dividir, separar, guerrear, conflitar. Logo, essa figura rejeita a unidade, que é divina, considerada "verdade" e de posse do paraíso. Já a palavra "símbolo" deriva de SYN- (junto) + BALLEIN (lançar, jogar, atirar), indicando "o que se lança junto", "jogar junto", com o sentido de comportar, no mínimo, dois elementos diferentes em união. O símbolo possui uma parte clara, conhecida, que é a figura pela qual o percebemos; ao mesmo tempo, contém outra parte, desconhecida, o seu sentido, da qual somos inconscientes. A poesia, os textos religiosos, os mitos, os contos de fada, os sonhos, as visões e as fantasias são repletos de símbolos. Portanto, se o símbolo, pelo menos etimologicamente, se opõe ao Diabo, indicaria este tudo o que é literal, claro e plenamente expresso? Penso que sim.
     O sentido do Diabo seria a tendência que todos temos em nos identificar com apenas um dos extremos, ser parcial, um polo apenas. Não é possível a identificação com os dois aspectos opostos de um mesmo elemento, pois se dou o mesmo valor aos dois lados, é sinal de que me distancio de ambos. Desse modo, não sou possuído pelo vício ou pelo anseio do prazer do objeto ou pessoa. É interessante, nesse sentido, o fato de que os dependentes químicos tendem a perder, com o tempo, a noção da linguagem simbólica, e que, na medida que a recuperam ou a desenvolvem, conseguem se distanciar das drogas. O mesmo é válido para os psicóticos, uma vez que se encontram muito prejudicados em perceber seus conteúdos internos de forma simbólica, o que os leva a tratá-los como literais, isto é, reais, projetando-os no mundo exterior. Esta explanação sobre o símbolo explica porque o desenvolvimento do pensamento científico isoladamente, tal qual é amplamente divulgado hoje em dia, é nocivo psicologicamente. A ciência pode transformar o indivíduo em demônio de si mesmo e de seus semelhantes.
     Com a tentação e a queda do homem veio o trabalho, a dor e a morte. Isso ocorreu porque, para haver trabalho a condição necessária é a oposição de dois polos, uma diferença de potencial: positivo e negativo (corrente elétrica), baixo e alto (caixa d'água), expansão e contração (motor), etc. A dor e a morte acompanham porque, com a identificação a um dos opostos, de tempos em tempos somos levados, involuntariamente, ao polo oposto, pois este aflora assim que a identificação afrouxa. Isto ocorre principalmente quando estamos cansados, estressados ou de alguma maneira incomodados. A força do nosso eu para deixar os conteúdos indesejados à distância diminui. Esses aspectos, então, vêm à tona. Com isso, dolorosa, apesar de temporariamente, mudamos, "morremos" para quem éramos. Assim que nos recuperamos, voltamos novamente à posição anterior, tradicional, segura. Esse processo ocorre continuamente até que aprendamos a nos distanciar dos extremos, alcançando e trilhando o caminho do meio. O Budismo aborda essa questão pela via do desejo: precisamos parar de desejar, uma vez que isso só leva ao sofrimento.
     É curioso que, em geral, associa-se a atitude do Diabo ao orgulho próprio. Seria, portanto, o orgulho uma forma de atitude extrema? Sim, porque o indivíduo prioriza, na imagem de si mesmo, o ideal coletivo ou particular, sem levar em conta sua personalidade total, que comporta também os aspectos opostos. Isso fere a unidade original, a totalidade psíquica, representada por Deus, uma das imagens do arquétipo do Si-mesmo. Ele tenta tomar o todo pela parte, generalizar para si o que é somente uma pequena porção. Isso desequilibra o estado de harmonia psíquica, que pode levar a sérias patologias. A própria Bíblia exemplifica esses casos em um episódio do livro de Daniel (clique aqui para acessar o relato completo), quando Nabucodonosor se ensoberbece, sonha com o prenúncio do próprio episódio psicótico temporário, tem seu sonho corretamente interpretado pelo profeta e depois de um ano volta a se autoengrandecer. Anuncia-se a doença e seu afastamento temporário do reinado, o rei passa a ter comportamentos próprios de animais e, depois de um tempo, volta à razão, atribuindo à grandiosidade antes imputada a si a Deus.
     Diabo, Deus, paraíso, Adão e Eva... mais do que personagens de antigas histórias, verídicas ou não, fazem parte de uma trama que encenamos diariamente. Importa menos se são mitos, ou se, admirados pela origem sagrada, sejam sempre lembrados como imagens perenes do que nos aguarda após a morte. Mais importante é lembrarmo-nos deles como realidades vivas em nós, a quem devemos atentar para não cairmos presas de sofrimentos inconscientes, para não sermos lançados no fogo do inferno de nossas paixões e podermos gozar um pouquinho do céu para, quem sabe um dia, conseguirmos permanecer por mais tempo no paraíso.


REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Tradução de Domingos Zamagna. São Paulo: Paulinas, 1985.
EDINGER, Edward F. Ego e arquétipo. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1992.
______. O encontro com o Self. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1991.
JUNG, Carl G. Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1978. v. 11/1.